Deliberação foi interrompida em março deste ano, após pedido de vista (mais tempo de análise) do ministro Dias Toffoli. Já há maioria de votos para que seja definido um critério que diferencie usuário de traficante. Julgamento no STF
Andressa Anholete/SCO/STF
O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta quinta-feira (20) o debate sobre critérios que configuram porte de maconha para uso pessoal.
Na abertura da sessão, presidente Luis Roberto Barroso explicou que o ato de consumo de drogas, mesmo que para uso individual, permanecerá como ato ilícito, ou seja, contrário a lei, independente de qual seja a decisão do Supremo.
A questão envolve saber se ele será um ato ilícito de natureza penal ou administrativa.
Na prática, deve persistir a possibilidade de aplicação de sanções administrativas já previstas na lei, como a advertência sobre os efeitos das drogas e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Se o Supremo entender que é um ato ilícito administrativo, não persistirá a punição de prestação de serviços à comunidade.
O ministro Alexandre de Moraes explicou o impacto da falta de um critério para diferenciar usuário de traficante. Deu como exemplo a diferença de tratamento de situações semelhantes.
“Um homem negro, analfabeto, de 18 anos, é considerado traficante com 20g. Alguém com mais de 30 anos, branco, com curso superior, só é considerado traficante em média com 60g. Estamos falando da mesma situação. A polícia chega. Os dois, em tese, podem estar lado a lado. Se os dois estiverem com 20g, só o negro é preso. Isso não é Justiça”, argumentou.
“Só a quantidade vem sendo usada, lamentavelmente, como uma forma de discriminação social”, completou Moraes.
O ministro Nunes Marques afirmou que a preocupação das famílias é de que a droga não entre em suas casas. Ou seja, não necessariamente apenas a possibilidade de punição.
“Precisamos não perder de vista como devemos colaborar com a sociedade para que a droga não entre na casa dos brasileiros”.
Primeiro voto da tarde
O julgamento nesta quinta foi retomado com o voto do ministro Dias Toffoli, que tinha pedido vista (mais tempo de análise) em março. Toffoli iniciou o voto afirmando que não há liberação de substâncias ilícitas nem retirada de funções do Poder Legislativo.
“Não há nenhum gesto do tribunal em direção à liberação de qualquer tipo de drogas ou entorpecentes. Nem mesmo nenhuma espécie de avanço indevido sobre as competências do Congresso Nacional. Não há, não há”, declarou.
“Em nenhuma hipótese está se discutindo a possibilidade de autorizar a comercialização ou o fornecimento, ou nenhum outro ato que se refira à venda ou distribuição de drogas”, completou.
Toffoli argumentou que o usuário de entorpecentes não deve ser tratado como um delinquente.
“Estou convicto de que tratar o usuário como um tóxico delinquente não é a melhor política pública de um Estado Social Democrático de Direito”.
Em que pé está a discussão
Até o momento, foram apresentados oito votos no caso. Já há maioria para que o tribunal estabeleça um critério que diferencie o usuário do traficante, mas ainda não há definição sobre a possibilidade de estabelecer uma quantidade a ser especificada de maconha para uso individual.
Em relação a esse último ponto, o placar está em 5 a 3. São cinco votos para descriminalizar o porte para uso pessoal de uma quantidade desta droga. Se houver mais um voto nesta linha, será formada maioria. Há três votos para manter o entendimento de que a conduta é criminosa.
O julgamento começou em 2015. Uma decisão da Corte terá impacto em pelo menos 6.354 processos, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça.
Porte de maconha: entenda o que está em jogo no STF
Retomada do julgamento
O caso deve voltar à deliberação no plenário com o voto do ministro Dias Toffoli, que havia pedido vista do processo (mais tempo de análise) em março. Mais dois ministros também votam, se não houver nova interrupção.
Devem apresentar seus posicionamentos a ministra Cármen Lúcia e o ministro Luiz Fux.
Efeitos da decisão
O processo tem repercussão geral, ou seja, a decisão tomada pelo tribunal deverá ser aplicada pelas outras instâncias da Justiça em processos com o mesmo tema. Isso vai ocorrer a partir de uma espécie de guia que será elaborado pelos ministros logo após a conclusão da deliberação.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, há pelo menos 6.354 processos com casos semelhantes suspensos em instâncias inferiores da Justiça, aguardando uma decisão do tribunal.
O que está em jogo
O tribunal deve decidir se é crime uma pessoa ter consigo drogas para seu próprio consumo. Além disso, deve fixar, em relação a uma ou mais substâncias, a quantidade considerada como de uso individual. A discussão não envolve o tráfico de drogas, conduta punida como crime que vai continuar sendo um delito, com pena de 5 a 20 anos de prisão.
Validade da Lei de Drogas
A Lei de Drogas, de 2006, estabelece, em seu artigo 28, que é crime adquirir, guardar e transportar entorpecentes para consumo pessoal.
No entanto, a legislação não fixa uma pena de prisão para a conduta, mas sim sanções como advertência, prestação de serviços à comunidade e aplicação de medidas educativas (estas duas últimas, pelo prazo máximo de 5 meses).
Ou seja, embora seja um delito, a prática não leva o acusado para prisão. Os processos correm em juizados especiais criminais e a condenação não fica registrada nos antecedentes criminais.
A norma não diz quais são as substâncias classificadas como droga – essa informação é detalhada em um regulamento do Ministério da Saúde.
Além disso, determina que cabe ao juiz avaliar, no caso concreto, se o entorpecente é para uso individual.
Para isso, o magistrado terá de levar em conta os seguintes requisitos: a natureza e a quantidade da substância apreendida, o local e as circunstâncias da apreensão, as circunstâncias sociais e pessoais da pessoa que portava o produto, além de suas condutas e antecedentes.
Ou seja, não há um critério específico de quantidades estabelecido em lei. Com isso, a avaliação fica a cargo da Justiça.
A lei de 2006 substituiu a regra que vigorava desde 1976. Na antiga Lei de Drogas, carregar o produto para uso individual era crime punido com prisão – detenção de 6 meses a dois anos, além de multa.
Diferenças entre descriminalização, despenalização e legalização
Despenalizar significa substituir uma pena de prisão (que restringe a liberdade) por punições de outra natureza (restrições de direitos, por exemplo).
Legalizar é estabelecer uma série de leis que permitem e regulamentam uma conduta. Estas normas organizam a atividade e estabelecem suas condições e restrições – regras de produção, venda, por exemplo. Também pune quem descumpre o que for definido. Na prática, é autorizar por meio de uma regra.
Já descriminalizar consiste em deixar de considerar uma ação como crime. Ou seja, em âmbito penal, a punição deixa de existir. Mas é possível ainda aplicar sanções administrativas ou civis.
O Supremo não está discutindo despenalizar nem legalizar a conduta. O que está em debate é se uma pessoa pode portar uma quantidade mínima que seja considerada para uso próprio. E estabelecer qual é essa quantidade.
No entendimento dos ministros, a despenalização já ocorreu e foi feita pelo Congresso Nacional, quando substituiu a lei de 1976 pela de 2006. Isso aconteceu porque a nova redação passou a prever sanções que não envolvem mais prender o acusado.
Também não há legalização, já que a elaboração de leis e regulamentos para uma atividade é uma atribuição do Poder Legislativo.
O Supremo foi provocado a se manifestar a partir de um recurso que chegou à Corte em 2011. O caso envolve a condenação a 2 meses de prestação de serviços à comunidade de um homem que portava 3 gramas de maconha dentro do centro de detenção provisória de Diadema (SP).
A Defensoria Pública questionou decisão da Justiça de São Paulo, que manteve o homem preso. Entre outros pontos, a defensoria diz que a criminalização do porte individual fere o direito à liberdade e à privacidade.
Esses direitos fundamentais estão previstos na Constituição. Como a matéria envolve a Carta Magna, cabe ao Supremo se pronunciar.
Placar do julgamento
O julgamento começou em agosto de 2015. Foi interrompido por pedidos de vista, que permitem uma análise mais detalhada do processo.
Os votos favoráveis à descriminalização têm em comum a liberação do porte da maconha para usuários, com propostas diferentes quanto à fixação dos critérios para a caracterização do uso pessoal.
Votos dos ministros
Veja como votaram os ministros até aqui e o que cada um estabeleceu de entendimento:
Gilmar Mendes (relator)
Inicialmente votou para descriminalizar todas as drogas para consumo próprio. Mas, em agosto do ano passado, reajustou seu voto para contemplar posicionamentos já apresentados por outros ministros. Restringiu sua análise à maconha e considerou que não é crime o porte da substância para consumo pessoal – se estiver entre 25 e 60 gramas ou forem seis plantas fêmeas.
Edson Fachin
Defendeu que a liberação do porte fique restrita à maconha, mantendo as regras atuais de proibição para as demais drogas. Devem ser mantidas como crime a produção e venda da maconha. Propôs que o Congresso precisa aprovar uma lei para distinguir usuário e traficante, estabelecendo, por exemplo, quantidades mínimas para essa caracterização.
Rosa Weber (já aposentada)
Votou na linha do relator e dos demais ministros. Concluiu que a criminalização da conduta de portar drogas é desproporcional.
Luís Roberto Barroso
Entendeu que a descriminalização do porte individual deve se restringir à maconha. Propôs um critério para definir quem seria enquadrado em usuário.
Para o ministro, ficaria liberado o porte para consumo pessoal quem estiver com até 25 gramas de maconha ou que cultivar até seis plantas cannabis fêmeas para consumo próprio.
Os parâmetros não são rígidos – o juiz, ao analisar casos concretos nas audiências de custódia, pode considerar traficante alguém que porte menos que 25 gramas, ou usuário alguém que leve consigo mais do que isso. Nesse caso, contudo, o magistrado vai ter que fundamentar sua decisão. Esse sistema estaria em vigor até a definição de parâmetros pelo Congresso Nacional.
Alexandre de Moraes
O ministro propôs que o Supremo fixe o entendimento de que não é crime a conduta de “adquirir, guardar ter em deposito, transportar ou trazer consigo para consumo pessoal” a maconha; será considerado usuário que tiver de 25 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas.
Além disso, o critério da quantidade não será o único para verificar a condição de usuário. Isso porque, mesmo se a pessoa se encaixar nos limites do item anterior, se ela tiver sido encontrada com outros elementos que indiquem o tráfico de entorpecentes (caderno de anotações de vendas, balança de precisão, por exemplo), a prisão em flagrante por tráfico poderá ser feita pela polícia, desde que os agentes comprovem a presença destes outros critérios.
Havendo prisão em flagrante por quantidades superiores ao mínimo fixado, na audiência de custódia a autoridade deverá permitir ao suspeito a possibilidade de comprovar que é usuário.
Cristiano Zanin
Votou para não descriminalizar o porte, mesmo para uso pessoal. Considerou que uma eventual liberação contribuirá para agravar problemas de saúde relacionados ao vício. Concluiu, no entanto, que é preciso um critério para diferenciar o usuário do traficante – propôs a quantidade máxima de 25 gramas.
André Mendonça
Votou pela validade da Lei de Drogas, que prevê o porte de maconha para consumo próprio como crime. Entendeu, no entanto, que é preciso diferenciar a quantidade que define que é usuário e traficante.
Ao se posicionar, Mendonça apresentou pesquisas americanas que apontam que 10% das pessoas que experimentam maconha desenvolvem dependência. E que o uso da substância pode aumentar o risco de transtornos psiquiátricos. O magistrado citou outros exemplos de efeitos da droga para adultos e mulheres grávidas.
Afirmou que ela afeta funções cerebrais de movimento, sensações, memória, motivação e julgamento. Também apresentou dados das Nações Unidas sobre o comércio ilegal da substância. “Isso faz a maconha, fumar a maconha… é o primeiro passo. Se é pra dar um primeiro passo pro precipício”, declarou.
Nunes Marques
Assim como Mendonça, concluiu que a lei deve ser mantida em vigor e que é necessário diferenciar usuário de traficante.
O ministro também afirmou que, com a despenalização operada pelo Congresso Nacional, a Lei de Drogas manteve o delito, apesar de não punir com a prisão, mas sim com medidas alternativas. “As condutas ostentam a natureza de crime”, declarou.
Para Nunes Marques, o debate sobre o tratamento a ser conferido ao usuário deve ser feito no âmbito do Congresso. O magistrado concluiu que invalidar o que prevê a lei pode representar “interferência desproporcional” na política de drogas. Além disso, a medida pode multiplicar o tráfico de entorpecentes.
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