O multiverso de Zé Ramalho | …

Rodinei Crescêncio

Suelme Fernandes capa - nova foto

Semana passada estava voltando para casa na sexta-feira, quando ouvi no rádio o locutor anunciando o show de Zé Ramalho em Cuiabá. Pensei em não ir, sempre achamos motivos para não ter lazer penando nas filas, custos, estacionamento e por aí vai.

Mas lembrei que na minha juventude tinha perdido um show do Renato Russo, do Legião Urbana e do Raul Seixas, em Cuiabá, e que em seguida, ambos morreram. Decidi ir.

Para minha supresa quando entrei no show de cara já encontrei dois amigos dos tempos  universitários: Wilian Vieira que hoje é professor doutor do curso de Matemática da Unemat, e Leonardo Sant’Ana, da Comunicação Social, hoje cineasta. Eles foram, assim como eu, homenagear e relembrar  nossos tempos estudantis e as canções de Zé Ramalho. Foi um déja vú.

O show me permitiu mergulhar de perto no universo estético de cancioneiro e o banquete esotérico de símbolos e seus múltiplos significados e significantes. Experiência sensorial que jamais teria sem a presença física do próprio cantor se apresentando.

A qualidade musical da banda e a maestria de Ramalho no auge de sua maturidade lembrava B. B King, com sua guitarra que além de instrumento era também o primeiro violino da banda dirigindo, afiando os demais instrumentos e improvisando as inúmeras nuances, viradas e variações do show. Vi passar no palco de maneira incidental os solos de  Bob Dylan, Pink Floyd, Bob Marley, Beatles, Chuck Berry,  Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Aboio, Coco e Maracatu.

O show foi  a maior demonstração de que não existe cultura regional hermética e que todas as artes são globais enriquecidas pela cultura popular como propôs o Manifesto Antropofágico  da Semana de Arte Moderna de 1922.  Ramalho propôs diálogos  necessários na música, mas que servem também nos tempos atuais  na política a busca da harmonia do conclave.

Abriu seu show com a monumental “Para não dizer que não falei das flores”, nossa “Imagine”, tropicalista do Paraibano Geraldo Vandré.

A escolha dessa canção tinha uma  intenção de exorcizar qualquer pensamento  reacionário  que estivesse inadvertidamente na plateia e também para acessar a memória afetiva da seleta plateia, como ponto de abertura de um ritual afrobrasileiro.

O show foi  a maior demonstração de que não existe cultura regional hermética e que todas as artes são globais enriquecidas pela cultura popular como propôs o Manifesto Antropofágico  da Semana de Arte Moderna de 1922

E lá estava sua crítica aos totalitarismos: Que na tortura toda carne se contrai. E normalmente, comumente, fatalmente, felizmente displicentemente o nervo se contrai Ô, ô, ô, ô, com precisão Nos aviões que vomitavam pára-quedas Nas casamatas, casas vivas caso morras E nos delírios, meus grilos temer.

Apesar da vastidão do seu acervo autoral, generosamente Zé Ramalho fez a opção de cortejar cantando canções de outros nordestinos no seu repertório, além de Geraldo Vandré, cantou músicas do mineiro da Zona da Mata Zé Geraldo com a música Cidadão e do baiano Raul Seixas com Ouro de Tolo e Medo da Chuva.

Vi um Zé Ramalho buscando aliados, afirmando a nordestinidade da sociedade e da música brasileira e conclamando a união na defesa desse nordeste que sempre é  posto como problema e que desperta tantos ódios no país. Foi lá que Cristo me disse rapaz larga de tolice nãos e deixe amedrontar …Hoje o homem criou asas e na maioria das casas eu também não posso entrar.

É momento de alianças políticas e diálogos e não de imposição. Como é triste a tristeza mendigando um sorriso, um cego procurando a luz na imensidão do paraíso.

Alem dessa posição política pacifista, a fé também guiou todas as canções do show, como uma procissão que leva São Francisco ao altar e busca de proteção constante que define a alma brasileira diante das adversidades:  Um compromisso submisso, rebuliço no cortiço Chame o Padre Ciço para me benzer Oh, com devoção.

Falo de uma fé híbrida, sincrética, mestiça, cabocla e impura de cristãos novos, mulcumanismos e afroreligiosidades. Signos  que caminham juntos  como esoterismo, como avô e pai, como Avohai. Rebuscando a consciência com medo de viajar Até o meio da cabeça do cometa
Girando na carrapeta no jogo de improvisar.

Apesar de  ter abandonado o curso de medicina para ser cantor, a música de Zé Ramalho tem uma propriedade medicinal motivacional impressionante, às vezes imperceptível no jogo de signos que usa, suas pregações são mantras curativos: Acho bem mais que pedras na mão…Acho que os anos Irão se passar Com aquela certeza Que teremos no olho Novamente a ideia De sairmos do poço Da garganta do fosso Na voz de um cantador.

Ramalho fala da busca de si e os desafios dos relacionamentos humanos que chamou de  a folha do não-me-toque E o medo da solidão pois  Há tantas violeta velhas sem um colibri.

Como no clássico Sinônimos: É como ter mulheres e ter milhões e ser sozinho Na solidão de casa descansar Ninguém pode dizer onde a felicidade está.

Depois desse banquete de signos,  Zé Ramalho trouxe  o amor como fechamento  da longa caminhada imersiva sensitiva. Cantou  a consagrada  Chão de Giz e Garoto de Aluguel.

Reconhece seu compromisso com o amor: Agora pego um caminhão Na lona vou a nocaute outra vez Pra sempre fui acorrentado no seu calcanhar.

E também a indiferença do amor não correspondido, da perfídia  brasileira  tão nossa, que machuca:  Deixe a porta aberta quando for saindo Você vai chorando e eu fico sorrindo Conte pras amigas que tudo foi mal (tudo foi mal!) Nada me preocupa de um marginal

Zé Ramalho nos seus 73 anos de vida ainda tem muito a nos ensinar com suas músicas, a viver com sabedoria  enfrentando nossos medos, amores e incertezas infinitas na beira do mar:  E até que a morte eu sinta chegando Prossigo cantando, beijando o espaço Além do cabelo que desembaraço Invoco as águas a vir inundando Pessoas e coisas que vão arrastando.

Nesse corolário de composições vintages, Zé Ramalho se mantém atual com seu alforje de caçador, continua  a fazer sentido num pais machucado, confuso e divido…. Oh, boi O povo foge da ignorância Apesar de viver tão perto dela E sonham com melhores tempos idos Contemplam essa vida numa cela.

Suelme Fernandes é mestre em História e articulista político



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