Um paradigma foi quebrado, diz Luciene Carvalho sobre posse inédita na AML | …

Rodinei Crescêncio/Rdnews

luciene carvalho raio x

Após conquistar  o marco de primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Academia Mato-grossense de Letras, a poeta Luciene Carvalho é empossada presidente da AML para o próximo biênio. No cargo, ela almeja expandir o acesso à literatura no estado e transformar Mato Grosso em ponto de referência nacional sobre discussões entre escritores e pensadores contemporâneos. Em entrevista, ela compartilhou os receios, conquistas e planos ao alcançar um lugar de destaque, sendo considerada uma figura representativa para mulheres negras periféricas.

Confira, abaixo, a entrevista especial

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Neste sábado (30) a senhora é empossada como presidente da Academia Mato-grossense de Letras (AML) e já declarou que no começo teve receio de aceitar o convite para a eleição. Então, como foi a decisão de aceitar e o processo de se candidatar? 

Eu trabalho com literatura, eu vivo profissionalmente da literatura que eu canto nos meus versos e essa caminhada merece sim ser respeitada e recebida


Luciene Carvalho

Talvez essa seja a parte mais complicada que eu atravessei até aqui. Houve o convite de algumas pessoas, que me sinalizaram que seria um bom momento para a minha carreira, estar à serviço da casa e assumir a gestão. Mas, também, teve o momento da travessia íntima, de eu acreditar que, o que te tinha conquistado nesses 22 anos de poeta profissional de Mato Grosso, eu poderia capitalizar para a Casa, e que seria bom, que eu tenho competência para fazer isso. Então, foi um processo interno, de aceitar convite e um processo de articular, de juntar em torno de mim gente que eu gostaria muito de estar trabalhando junto. 

Diante dessas duas décadas de carreira, com mais de 10 livros lançados e há oito anos membro da Academia. A senhora acredita que ser eleita presidente é o grande reconhecimento do seu trabalho?  

É lavoura. Lavoura que brota da criança pantaneira declamando, dentro de mim, no gosto pela arte, pela literatura. Esse gosto surgiu de forma aleatória e volta com muita força, com muito fluxo, mas que ainda assim eu desconhecia como um caminho, um caminho de vida e um caminho de profissão. Porém, em 2000 eu tomei a decisão de que ia viver disso, que eu ia dar oportunidade para que isso se transformasse em uma carreira. E aí me responderam, de todos os lados o eco era assim: mas ninguém vive de poesia em Mato Grosso. E dentro de mim a voz dizia: Mas, se ninguém vive, talvez tenha espaço para isso. Eu aproveitei as leis de incentivo e busquei me profissionalizar. Hoje esse é meu trabalho, mas precisei da menina declamadora pantaneira, porque a oralidade poética me garantiu uma moldura interessante para eu vender o meu trabalho como produto, porque isso é o que tenho de diferente. Eu trabalho com literatura, eu vivo profissionalmente da literatura que eu canto nos meus versos e essa caminhada merece sim ser respeitada e recebida. 

Como o lugar social de mulher negra marca a sua trajetória como profissional?

Nós somos as fábricas de muitos dos operários sem salários, que construíram esse Brasil. Chegou o momento em que é necessário entender que o útero da mulher preta pariu e pari muito do que é dor e opressão. Então, me colocar no outro lugar é também estar na luta todo dia. Para nós é afirmar pelo cabelo, é buscar caminhos para manter os dentes  e essa questão não é pessoal, esta questão está ligada à desigualdade social e a dívida social da escravidão. Nós mulheres pretas temos urgências de trabalhos que rendam dinheiro, porque não somos herdeiras, não existe herdeira de quem vem de escravizados. Eu sou muito grata a minha mãe, que vendeu Avon para que eu pudesse me dedicar aos estudos, para que eu tivesse tempo e eu tenho consciência da trajetória da minha história e das que vieram antes de mim também. Eu cérebro todas elas, elas são verdadeiramente o que me move, mas eu também celebro na minha atitude todas que chegarão depois e irão muito mais longe que eu.

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Luciene Carvalho, presidente da AML

Há nos seus versos prazeres, alegrias e muitas dores de vivências negras coletivas. Agora, neste espaço de destaque institucional e sendo a primeira mulher negra presidente de uma Academia de Letras no Brasil, o que Luciene também narra para seu público? 

Eu vou sempre escrever como uma mulher preta, porque escrevo de dentro de mim, a minha escrita vem da alma


Luciene Carvalho

Eu tenho entendido que representação não é uma escolha. Algumas pessoas tentam criar representatividade. Para começar, a melanina não se esconde quando vem expressa na pele. E a minha é desse modelo, o meu cabelo, meu nariz, minha boca, minha pele é preta, independente de eu querer ou não, essa é uma das características. A minha poesia é feminina porque eu sou mulher e enxergo o mundo como mulher. Em relação à minha representatividade, a minha representatividade só é legítima quando ela vem do outro para você, quando o outro te reconhece como porta voz de verdades e sensibilidades que estavam silenciadas. Eu penso que, desde o momento que a academia, em 2015, me aceitou aqui dentro, já estava tratando de inclusão, não de cota, inclusão e reconhecimento não é cota. Eu não tenho nada contra cota. Mas, acho importante dizer, que para além de mulher preta que escreve, eu sou uma mulher preta que busca escrever bem, no sentido de profundidade, de comunicabilidade, no sentido de ser porta voz de emoções femininas pretas lindas e também emoções femininas para mulheres de todas as cores. Mas, eu vou sempre escrever como uma mulher preta, porque escrevo de dentro de mim, a minha escrita vem da alma. Então, eu não entro como uma escritora preta, neste momento, eu entro como uma imortal, como uma membro da Academia Mato-grossense de Letras Legitimamente eleita pela obra que constituiu e que tem muita honra de ser uma mulher preta do meu tempo. 

É muito simbólico que uma mulher negra, pertencendo a um grupo socialmente atravessado por diversas desigualdades sociais, possa se referenciar como imortal. Para a senhora, o que isso sinaliza sobre a nossa sociedade e quais movimentos foram capazes de se consagrar imortal?

Vivendo aqui nesta Casa, eu entendi que imortal é minha obra. Então, quando eu coloco as minhas emoções de mulher e coloco essas emoções numa estatura de bem guardadas para sempre, eu estou indo contra a maré do que mata mulheres, na grande maioria mulheres negras. Então, quando uma mulher negra me colocou neste lugar de presidente da academia, de visibilidade, é uma atitude pessoal de busca e preservação de mulheres negras, eu me preservo, eu me celebro, eu me exponho falando do lugar que toda mulher preta brasileira deveria ter o direito.

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Luciene Carvalho, presidente da AML

Ainda sobre os desafios estruturais atravessados pelas mulheres negras, como a senhora espera que será a sua atuação na AML, enfrentando os desafios de uma instituição centenária que também reflete paradigmas sociais?

Quando você aceita um convite de um cargo, você aceita os desafios e responsabilidades. Eu sempre usei uma estratégia comum, eu me cerco de aliados. Existe uma chapa muito bem constituída que hoje será a futura mesa diretora. Então, existem pessoas que se aliaram para desenvolver esse trabalho comigo. Eu não acredito que a gente possa fazer grandes transformações trabalhando sozinha, então eu acredito que vou estar emparceirada e atenta. Tem uma frase que eu acho essencial, “estar atenta ao aliados faroleleos”, a mídia é um parceiro interessante, que repercute o que a gente faz e, ao mesmo tempo, nos brinda. Creio que estou muito bem articulada como 4 poder, eu sou uma escolha da mídia cuiabana e mato-grossense.  Desde o momento que eu tive coragem de expor as minhas produções, de alguma forma, eu fui amparada. 

A sua posse também se torna um marco histórico porque é a primeira vez que uma mulher presidente passa cadeira para outra mulher na AML. Qual a sensação de protagonizar essa passagem ao lado da Sueli Batista dos Santos? 

Eu fico assim extremamente grata pelos deuses da literatura terem escolhido a mim para esse momento. E eu venho de uma sucessão, eu venho de uma extensão de um trabalho, de um renovo de trabalho que foi muito bem feito. A Sueli fez um ação estruturante , é uma mulher respeitabilíssima, que se dedicou nos últimos 4 anos a ampliar, não só o alcance da Casa, mas a quantidade de pessoas que pode vir aqui e essa casa foi fundamental no meio de produção cultural no pós-pandêmico. Imagina uma presidente que atravessou os 300 anos de Cuiabá, 100 anos da AML, uma pandemia e conseguiu fazer a casa efervescer. Isso me estimula a fazer um trabalho admirável, não sei se vou alcançar, mas vou me deliciar. Estou em estado de paixão pela AML, é um caminho de amor, de compromisso, de dedicação. 

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Luciene Carvalho, presidente da AML

Com essas alianças e parcerias, quais são os planos para os próximos dois anos de gestão?

Teremos dois movimentos que são essenciais: lembrar que a AML é estadual. Ela tem essa sede aqui em Cuiabá, mas ela representa toda uma produção, memória, guarda de conhecimento e fomenta a escrita do estado. Então, uma das coisas que a gente pretende é ter o apoio e aliança da Associação Mato-grossense dos Municípios  para estarmos nos municípios das regiões diversas que formam esse grande estado.  Eu acho que a  literatura é fundamental na construção de uma identidade estadual sim. Alguns dizem que esse é tema superado, eu não creio. Um outro movimento é sermos referência de discussão e pensamentos com figuras nacionais relevantes, nós podemos ter aqui para nos ajudar a furar tal bolha cultural e artística, pensadores que discutem ideias. A gente pensa em trazer pessoas, para que essa casa seja cenário de debates e conversas. E acho que também é relevante dizer que eu tenho muita vontade que Cuiabá e Mato Grosso e o mundo através das redes sociais conheçam o rosto de cada um das pessoas que estão na Academia. Eu acho que é para além de uma presidente, é um grupo de 40 pessoas que produz, que pensa, que pesquisa, guarda e fomenta conhecimento.

Com todo este caminho trilhado, imortalizada na história da literatura mato-grossense, o que a senhora espera de transformação nos cenários políticos, culturais e sociais? 

Depois disso, inúmeras mulheres negras saberão que elas podem. Está feito, é por isso que eu sou grata, pela honra de viver esse momento


Luciene Carvalho

Nada! Um paradigma foi quebrado. Depois disso, inúmeras mulheres negras saberão que elas podem. Está feito, é por isso que eu sou grata, pela honra de viver esse momento, a gente sabe que depois que acontece o inédito, é o inédito passa a construir possibilidade. Então, eu tenho a humildade de dizer, neste momento, que o meu melhor está feito, sou muito grata por ter tido coragem de superar as dores que são herdadas do olhar que o mundo nos dá. O mundo nos dá olhares de menos, de que você tem que provar a que veio, diferente de que fosse de qualquer outra racionalidade. Mano Brown diz que é duas vezes mais difícil, só de eu ter conseguido entrar na Casa, receber apoio, e construir uma mesa, eu acredito que eu vou dar o meu melhor mas já foi, já aconteceu uma coisa muito mágica, contribui para a história para libertação. Eu penso que a libertação do povo negro não se dá na hora que o povo negro é liberto, a grande libertação do povo negro é quando alcança a cidadania plena, é quando a gente pode ir, vir e ocupar, como qualquer outra cidadão. Eu penso que estou dando a minha contribuição, neste sentido. Estou disponibilizando meu corpo, a minha vida e tempo para que o inédito se dê. Agora não é comigo, agora é com tudo, agora é com todos. E eu espero que o povo preto, branco, enfim, o povo mato-grossense possa usufruir desse momento da Casa e esteja comigo. Estou muito feliz que o meu povo possa se espelhar com orgulho do movimento literário que eu fiz, esse é meu gesto pequeno de dizer: presente. 



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