Quem quer ser “filha da mãe”? | …

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Curiosa, para não dizer hipócrita, é a sociedade que promove homenagens às mães no segundo domingo de maio, mas que diariamente se refere a elas de maneira tão cruel e pejorativa. Ninguém diz “filho do pai” quando quer xingar alguém. Os palavrões normalmente são no gênero feminino: “filho da mãe”, “filho da p*ta”, “mulherzinha” ou “filhinho da mamãe” estão entre os mais suaves.

Se absorvermos toda contradição e negatividade que há por trás da cultura patriarcal não vamos conseguir jamais nos conectar a esta importante mulher que, simbolicamente, é a representação da Grande Mãe e do Sagrado Feminino. A partir dela bebemos direto da fonte de poderes sublimes, tais como amor, beleza, criatividade, intuição e sensibilidade. Ou seja, atributos que faltam hoje no mundo!

Há alguns anos me deparei com a dificuldade de ter um relacionamento saudável com a minha mãe e, desde então, iniciei uma busca incessante por respostas. Fiz psicoterapia tradicional, constelações familiares, exercícios sistêmicos, outros exercícios terapêuticos e mesmo assim a barreira entre nós continuava. Descobri recentemente que a chave para isso era observar as minhas questões com o feminino.

Por que foi tão horrível nascer mulher? Inicialmente, fui desejada homem, tinha até um nome “Valério”, que era o nome do meu bisavô paterno. Um homem não tem como saber o que é ter sido idealizada, desde o ventre materno, diferente do que se é. Suponha que você consiga por um segundo ter empatia e veja a decepção nos olhares e vozes da família que não terão “um varão” para perpetuar a sua linhagem. Essa dor nos acompanha pela vida. É a dor de nascer mulher.

Os palavrões normalmente são no gênero feminino: “filho da mãe”, “filho da p*ta”, “mulherzinha” ou “filhinho da mamãe” estão entre os mais suaves

No livro A Jornada da Heroína, da psicoterapeuta norte-americana Maureen Murdock, que deveria ser uma Bíblia de cabeceira para mulheres que querem se reconectar ao próprio feminino, ela expõe informações essenciais para entender como o patriarcalismo fere a alma das mulheres ao ponto de não querermos ser quem somos e nos negando a própria identidade e essência:

“Como a sociedade rebaixa as qualidades femininas, é improvável que a mulher se valorize como mulher. Ela é vista e se vê como carente e age a partir do mito da inferioridade. Ela olha ao redor e vê as conquistas de homens – homens que não são tão inteligentes, criativos e ambiciosos quanto ela. Isso a confunde, mas confirma o que ela observa nas atitudes culturais: ‘O homem é melhor’… ‘A mulher não tem valor intrínseco próprio – seu valor está ligado à sua relação com os homens e às crianças”.

Inevitável não me lembrar de como foi nascer e crescer sendo uma menina, que a todo momento era impedida de me expressar como queria ou ser quem eu era livremente, o que incluía a maneira de me sentar, correr, subir em árvores ou no telhado, falar ou fazer determinadas coisas simplesmente porque isso “não era coisa de menina”. Fomos criadas para obedecer e ser “boazinhas”.

Além disso, a violência praticada contra nós, desde muito cedo, também molda quem somos. Já falei disso em alguns artigos. Fui abusada sexualmente pela primeira vez aos 6 anos, desde então desenvolvi muitos problemas emocionais porque não recebi ajuda para entender aquele turbilhão de emoções que me faziam sentir suja, aterrorizada, envergonhada e culpada. Cresci me achando diferente das outras meninas, que havia um “problema” comigo.

Depois descobri que a minha mãe também tinha sido abusada muito pequena, o que mostra que esse ciclo da violência e de baixa autoestima vêm de geração em geração destruindo principalmente as mulheres da família, que se tornaram indisponíveis emocionalmente e desconectadas à própria essência. Por não conseguir se amar, elas vivem apenas para os outros. O seu amor está condicionado ao “outro”. Embora socialmente aceito, isso é muito triste.

Após caminhar muito, cheguei a um ponto crucial da minha jornada: me reconectar ao feminino e todas as suas dores familiares e ancestrais – que não são poucas – e usar toda essa dor para algo positivo, para dar sentido à minha existência, ou desistir (o que não é ruim, é seguir a “manada”). Mas desse ponto onde estou, no alto de uma montanha, eu vejo uma linda paisagem. Há do outro lado um vale com grandes árvores, flores, pássaros cantando e um riacho de água cristalina.

Sim, eu sinto que posso atravessar para o outro lado. Minhas pernas doem, minha cabeça está aérea, sinto fome, solidão e desamparo, um frio sobe da barriga para o coração desencadeando palpitação e desce para as pernas me fazendo querer desfalecer, desmaiar. Será que dou conta de chegar àquele paraíso onde posso ser livre para ser quem sou? Para viver o meu destino?

Então me vem uma frase do Carl Gustav Jung, um psiquiatra e psicoterapeuta suíço: “Onde está seu medo, lá está sua tarefa”. Sim, “eu sou filha da minha mãe”, que era filha da minha avó, neta minha bisavó e, assim, sucessivamente eu recebo todo o feminino de todas as mulheres que vieram antes de mim. Sim, eu nasci mulher e hoje, aos 44 anos, estou disposta a me tornar uma mulher, com todas as dores e delícias, sabendo que ser mulher é “ser eu mesma” e o principal: “não ser obrigada a nada”. 

Rose Domingues é jornalista, escritora no RD Comunicação e escreve exclusivamente nesta coluna às segundas-feiras. E-mail: rose.rdcomunicacao@gmail.com



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