Rodinei Crescêncio/Rdnews
Com cinco processos delicados, a cachaça é uma bebida que pode conter diferentes características até chegar a ser um bem precioso na prateleira de uma casa. Muitos produtores se arriscam a fabricar a bebida com a sua própria assinatura, podendo até se orgulhar com os primeiros litros destilados. Entretanto, a produção de cachaça em Mato Grosso é a tradução de costumes familiares com a “caninha” que retomam décadas. Cada receita é engarrafada após anos de estudo, empenho e amor dedicados à família.
De acordo com o Anuário da Cachaça 2024, elaborado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), existe uma cachaçaria para cada 520 mil habitantes mato-grossenses, as quais já produziram 18 tipos da bebida. Esse dado coloca Mato Grosso na 20ª posição de fabricantes do país.
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A família do produtor rural Patrique Drescher trabalha com a fabricação de destilados há 45 anos. Natural de Colíder (a 633 km de Cuiabá), o fundador da Cachaça Água Clara tinha a produção da bebida apenas para consumo interno. Foi em 2017 que alguns amigos deram a ideia da comercialização do produto.
“A gente queria uma bebida de qualidade e, com o passar do tempo, colocamos a cachaça em um barril para o envelhecimento e tirávamos todo dia um pouquinho para experimentar durante o processo. Fomos presenteando os amigos e eles falaram que tínhamos que fazer para vender. De início, o meu pai não gostou muito da ideia porque é um negócio que envolve muito registro e demora pra legalizar, mas acabou acontecendo”, comenta Patrique.
A partir de uma produção de 300 litros em 2017, a Cachaça Água Clara prevê o aumento para 50 mil litros em 2025. As garrafas da cachaça da família de Patrique já estão disponíveis em mais de 30 municípios, sendo a maioria deles no Norte de Mato Grosso.
O processo de criação da cachaça envolve mais noções de química do que a fabricação de outras bebidas, como a cerveja. Como a matéria-prima é a cana-de-açúcar, o primeiro passo é a moagem seguida da decantação para a fermentação. Da moagem até a disponibilizar o mosto para a fermentação, este processo não deve ultrapassar quatro horas.
A partir da fermentação, que pode ir de 24 a 36 horas, o líquido passa para a destilação em alambique de cobre. Essa etapa serve para evaporar os álcoois e é a última oportunidade para controle de aromas.
No caso da Cachaça Água Clara, a empresa de São José do Rio Claro (a 296 km de Cuiabá) possui três tipos da bebida: branca, envelhecida em barril de amburana e envelhecida no barril de carvalho.
Para Patrique, o processo empregado na fabricação de produto e sabor não difere da concorrência. Entretanto, o cuidado com a matéria-prima e em cada etapa fazem com que a cachaça mantenha o padrão de qualidade desejado.
“Eu até brinco que não tem nada de diferente, mas é o amor e o carinho que a gente tem na hora de produzir, que é mais por gostar do que por uma questão financeira. O processo é o mesmo de outros colegas produtores. Não tem nada de diferente, mas é o carinho que a gente bota desde quando vai plantar a cana, a colheita, no processo de fermentação, mantendo a qualidade durante a produção”, explicou o empresário.
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Marcos Antonio Sguarezi, que produz a Cachaça Geodésica: família tem tradição na produção de bebidas
“Hippie do Vale da Benção”
Após uma estrada de terra sinuosa, com raios de sol se esgueirando entre as folhagens da mata fechada, se encontra o lar da Cachaça Geodésica, em Chapada dos Guimarães (a 67 km de Cuiabá). O sítio Monjolinho, do produtor Marcos Antonio Sguarezi, é uma terra de 42 hectares, sendo mais da metade pertencente a uma área de conservação. A família de Marcos Antonio, conhecido como o “hippie do Vale da Benção”, possui a propriedade desde 1986 e tem histórico com bebidas desde a chegada da primeira geração ao Brasil.
“A família já vem de tradição de produção de bebidas desde muito tempo da nossa história, cerca de 200 e poucos anos. A família sempre trabalhou com isso e eu, conhecendo isso, falei: ‘Gente, eu tenho que deixar de dar lucro para boteco e começar a produzir minha própria cachaça'”, conta Marcos.
Natural do Rio Grande do Sul, Marcos está há 50 anos em Chapada. Dentro do galpão onde funciona sua fábrica, o produtor rural guarda um dos primeiros barris de armazenamento feito por seu bisavô, originalmente para guardar vinhos italianos.
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Apesar de ser semelhante com a de Patrique, a história de Marcos com a cachaça começa em 2001, quando ganhou um pequeno destilador. Em sua primeira tentativa de produção, ele conta que conseguiu um pouco mais de um litro de cachaça, mas que foi suficiente para agradar os amigos.
Três anos depois, Marcos adquiriu um alambique maior até que, em 2019, fez a adequação para a produção com certificação do Mapa. Atualmente, a cachaçaria do Sítio Monjolinho passa por adequações, produzindo de dois a três mil litros anualmente. Após o término das certificações, a expectativa é de produzir até seis mil litros da bebida, assim como melado.
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Dentro do processo da cachaça Geodésica, Marcos conta que é preciso manter certo rigor na produção para que as melhores cana sejam destinadas para a cachaça.
“Uma touceira de cana tem canas de diferentes tamanhos e diferentes pontos de maturação. A cana que é para cachaça é colocada em uma esteira e a cana para melado, doce, em outra. Não que sejam produtos com qualidades diferentes, mas é que, para fazer cachaça, é preciso ter características distintas”, explicou o produtor.
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Marcos planta a própria cana-de-açúcar dentro da propriedade, em uma área de seis hectares. Além da matéria-prima, o produtor cultiva hortaliças na área, conseguindo manter um sistema que se retroalimenta, já que o bagaço da cana pode servir de adubo ou de combustível para uma caldeira.
Caso algo dê errado, como ter passado o tempo de fermentação ou o açúcar ter cristalizado, Marcos consegue aproveitar os resíduos em sua própria propriedade.
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Patrique Drescher trabalha com a fabricação de destilados há 45 anos
“A vinhaça, que é o resíduo de sua destilação, nós colocamos nos canteiros e eles ficam vivos. Quando uma fermentação ‘dá ruim’, nós temos que reativar essa fermentação. Quando nós reativamos a fermentação, o que a gente chama de lama da fermentação, nós aplicamos na área de produção, assim como parte do bagaço que sobra”, conta Marcos.
Felicidade e tradição
Dentro de um mercado que pode ser mal visto para muitos, ambos os produtores concordam que a produção de cachaça significa mais do que uma bebida que entorpece. Na opinião dos empresários, o objetivo da bebida é proporcionar boas memórias, para além da embriaguez.
“Quando a gente participa de uma feira e ou de uma degustação de supermercado, a gente distribui porções de felicidade, porque o intuito final da nossa produção é que a pessoa utilize a nossa bebida não para se embriagar, mas para comemorar algum sucesso na vida dela. Isso, para nós, é um sentimento de muita gratidão”, comenta Patrique.
Já para Marcos Antonio, manter o estilo e a tradição da família é um desafio à parte, mas muito recompensador.
“É muito bacana você conseguir manter dentro da família essa tradição. Eu vejo que a sucessão é um problema muito sério pra todo mundo. O meu filho, por exemplo, tem a opção de seguir com a carreira que ele desejar, ou vir aqui para dentro e assumir o que já está aí. Eu acredito que vai dar certo. Apesar de não ser tão rentável, um processo bem conduzido dá muita satisfação”, finaliza.