'Não é livre a sociedade que impõe o cárcere como solução para a miséria', diz ministra do STJ ao soltar morador de rua preso em SP


Recém-empossada no STJ, Daniela Teixeira mandou libertar homem de 36 anos que foi preso ao furtar uma mochila em estação da Linha 4-Amarela do Metrô de SP. Réu primário sem antecedentes, a ministra considerou exagerada a prisão preventiva e determinou que ele seja encaminhado ao serviço social. Homem em situação de rua revira lixo na Av. Paulista, em São Paulo.
ROBERTO CASIMIRO/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
A emissão de um habeas corpus em favor de um morador de rua que teve a prisão preventiva decretada em São Paulo por roubar uma mochila numa estação de Metrô chamou a atenção do meio jurídico nos últimos dias.
Emitido pela ministra Daniela Teixeira, recém-empossada no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o documento determinou a soltura do acusado e solicitou o acolhimento dele num abrigo enquanto se desenrola a ação penal.
Clique aqui para se inscrever no canal do g1 SP no WhatsApp
O habeas corpus foi concedido em 9 de fevereiro, mas só foi tornado público na última segunda-feira (19).
Na decisão, a ministra diverge da Justiça de primeira instância e do Tribunal de Justiça de São Paulo, que converteram a prisão do suspeito em preventiva sem adotar as medidas cautelares que já são previstas em lei para casos semelhantes.
No entendimento de Daniela Teixeira, o homem foi mantido preso apenas por se enquadrar no que ela chama de “estereótipo do morador de rua”.
“Não há nos autos o que sugira que o paciente viva de atividades ilícitas, apenas conclusões peremptórias a partir de um estereótipo do morador de rua: sem endereço fixo, sem trabalho – logo, só pode viver do crime. A vida não é tão simples. Definitivamente não no Brasil, não em São Paulo. (…) Os miseráveis estão às portas, sim. 54 mil na São Paulo de agosto de 2023. Mas medo não é, nem pode ser princípio de política pública no Estado de Direito”, declarou.
A ministra Daniela Teixeira, nova integrante da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Gustavo Lima/STJ​/Divulgação
Segundo a ministra, pelas leis atuais, o caso nem deveria ter chegado ao STJ, uma vez que se trata de um problema de acolhimento social que precisa ser resolvido pelo poder público.
“É preciso buscar outra solução para o caso. A prisão preventiva não faz sentido. O paciente precisa de mais atenção e não de segregação. É para isso que existe a assistência social, as políticas de renda básica, os abrigos, o olhar acolhedor do Poder Público”, disse.
“O Poder Público precisa estar pronto e articulado para responder às consequências desse fenômeno. E não é o encarceramento que resolverá. A Constituição Federal, em seu art. 3º, estabelece que o Brasil existe como unidade política para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Não é livre a sociedade que impõe o cárcere como solução para a miséria”, completou Daniela Teixeira.
Furto na estação
O morador de rua E.F.F., de 36 anos, foi detido na noite de 21 de janeiro por seguranças da estação Oscar Freire da Linha 4-Amarela do Metrô. No boletim de ocorrência, consta que ele andava descalço e sujo na estação – que fica numa das ruas mais nobres da capital paulista – quando foi abordado por seguranças, que questionaram se precisava de ajuda ou informação.
Como o homem negou a necessidade de ajuda, passou a ser vigiado pelos seguranças da estação, o aue durou cerca de 40 minutos. Na sequência, o homem pegou a mochila de um usuário distraído que estava sentado no chão e saiu correndo.
Na mala havia pertences como telefone celular, óculos escuros, fone e kit de ferramentas de trabalho. Segundo o boletim de ocorrência, a vítima correu atrás do morador de rua para recuperar a mochila e desviou de um soco no rosto dado pelo suspeito.
Estação Oscar Freire da Linha 4-Amarela, na esquina da Av. Rebouças com a Rua Oscar Freire, endereço chique de SP.
Divulgação/GESP
Na sequência, E.F.F. foi rendido pelos vigilantes da Linha 4 e, exaltado, tentou agredir um deles. Ele foi preso em flagrante, acusado de roubo com emprego de violência, artigo 157 do Código Penal.
A vítima teve uma luxação no pulso e um corte do joelho devido a uma queda na perseguição do criminoso.
No registro policial e na denúncia apresentada à Justiça pelo Ministério Público de SP, não consta que o suspeito tenha antecedentes criminais. A Defensoria Pública paulista, que cuida da defesa do morador de rua, alegou que ele é réu primário e cometeu um furto simples.
“Não é justa a sociedade que não sabe o que fazer quando um morador de rua, desarmado e despossuído, desorientado e desvalido, ao se ver observado por quarenta minutos por seguranças num espaço público limpo e organizado como o metrô de São Paulo, se enfurece e acaba por ir às vias de fato com outro transeunte e causa grande tumulto até ser contido num dia de fúria”, disse a ministra Daniela Teixeira ao acolher o pedido de habeas corpus e decretar a liberdade do morador de rua.
“Não é solidária a sociedade que não enxerga em todos a mesma condição humana de quem assina um decreto prisional, de quem volta do trabalho no metrô, de quem faz a segurança de uma estação, de quem a economia, a desigualdade e o fracasso do Poder Público jogou na rua, descalço, irritadiço, irascível, miserável. Preso, por falta de instrumental do Estado para melhor encaminhar a situação”, declarou a ministra.
Medidas cautelares
Moradores de rua tentam se proteger no frio nas ruas do Centro de São Paulo.
Paula Paiva Paulo/G1
Na decisão, a ministra pediu para que, após ser libertado, o morador de rua seja encaminhado “ao órgão de assistência social do município, em busca de abrigo” e que ele “aceite oportunidades de empregabilidade e renda”. Ela também determinou que se verifique se o réu está com sua documentação de identidade em dia, se tem carteira de trabalho e cartão de vacinação em dia.
Em caso negativo, o réu deve ser encaminhado ao serviço social e de saúde para tirar a documentação e atualizar a caderneta de vacinação.
Enquanto o processo corre, ele também precisa cumprir as seguintes medidas cautelares:
Passar todas as noites em um abrigo municipal;
Ser entrevistado mensalmente pela Defensoria Pública, que deve relatar a evolução de sua situação pessoal.
Quem é Daniela Teixeira
Mestre em direito penal pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa e advogada há 27 anos, a ministra Daniela Teixeira foi nomeada ministra do STJ após indicação do presidente Lula (PT). Ela fazia parte da lista de advogados indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para a vaga do ex-ministro Felix Fischer, que se aposentou em 2022.
Ela tomou posse como ministra em novembro de 2023 com outros dois colegas.
A advogada Daniela Teixeira, indicada por Lula para o cargo de ministra do STJ, em imagem de 2017.
José Alberto/Superior Tribunal de Justiça
Antes de ser ministra, Daniela Teixeira atuou como integrante da comissão de reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro instituída pela Câmara dos Deputados e foi conselheira federal da OAB.
Considerada de perfil mais progressista e moderno, Teixeira foi a única mulher indicada para o STJ nos últimos dez anos. Antes dela, a última posse de uma mulher para o posto foi a da ministra Regina Helena Costa, em 28 de agosto de 2013.
Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça conta apenas com seis mulheres na sua composição – entre elas, a presidente, Maria Thereza de Assis Moura. O tribunal tem um total de 33 ministros.
Compõem o STJ as ministras:
Nancy Andrighi – posse em outubro de 1999;
Laurita Vaz – posse em junho de 2001;
Maria Thereza de Assis Moura – posse em 2006;
Isabel Gallotti – posse em agosto de 2010;
Assusete Magalhães – posse em agosto de 2012;
Regina Helena Costa – posse em agosto de 2013.
A primeira mulher a integrar o STJ foi a ministra Eliana Calmon, em 1999. Após Eliana, também fez parte do tribunal a ministra Denise Arruda, entre 2003 e 2010.
Ao tomar posse como ministra, Daniela publicou um texto na página do STJ na internet dizendo que levaria ao tribunal o “olhar de quem conhece a realidade atual da advocacia e da cidadania”
A advogada Daniela Teixeira, nova ministra do Superior Tribunal de Justiça.
Roque de Sá/Agência CNJ
“A segunda razão pela qual troco a beca de advogada pela toga da magistratura: levar o olhar de quem conhece a realidade atual da advocacia e da cidadania – porque o mundo é muito diferente daquele de 1988 – para um Tribunal tão importante quanto o Superior Tribunal de Justiça.”
“Por fim, e não menos importante, consigno que me move, e todos que conhecem um mínimo da minha história sabem disso, me move a luta das mulheres por igualdade. É claro que essa igualdade está em todos os comandos legais. Mas a realidade não mostra isso. E ter o olhar feminino, em todos os lugares onde a vida das pessoas possa ser decidida, é fundamental”, declarou.

Fonte

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *