Rodinei Crescêncio/Rdnews
O vício em jogos de azar como o famoso “jogo do tigrinho” não é inofensivo e pode virar doença, classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como ludopatia, além de levar a transtornos mentais, como a depressão, explica a psiquiatra Maria Eduarda de Musis, coordenadora do módulo de saúde mental da Universidade de Cuiabá (Unic). Além disso, a especialista ressalta que, assim como qualquer outra dependência, o vício em jogos tem mais probabilidade de se manifestar em pessoas com a doença no histórico familiar, por causa da herdabilidade genética.
A doença tem dois números de Classificação Internacional de Doenças (CID): um para mania de jogo e apostas (10-Z72.6) e outro para jogo patológico (10-F63.0). A preocupação tem crescido com o aumento do uso das apostas online, de forma que o assunto está sendo discutido no Governo Federal e no Senado. O vício em jogos de azar muitas vezes pode levar uma pessoa a vender bens para conseguir dinheiro e perder tudo que tem para fazer apostas.
“Antigamente não tinha esse diagnóstico de jogo patológico. Recentemente, ele entrou no nosso manual e tem o diagnóstico de transtornos por dependência de jogos ou jogos patológicos. O vício acontece por um fator químico no cérebro mesmo, devido aos estímulos. Tudo que gera estímulo e prazer, tudo que aumenta a dopamina, tem risco de dependência. Isso acontece com dependência de drogas, álcool, com pornografia, e acontece com os jogos também”, explica Maria Eduarda.
Kethlyn Moraes
A dopamina, citada pela psiquiatra, é um neurotransmissor produzido pelo cérebro que tem relação com a sensação de prazer e recompensa. A substância é liberada sempre que o cérebro recebe sinais de experiências prazerosas, criando uma associação positiva entre o comportamento e seu resultado. Alguns comportamentos excessivos levam a um estado de euforia, mas grandes quantidades de dopamina tornam o cérebro menos sensível à ação deste neurotransmissor. Dessa forma, a pessoa precisa de cada vez mais dopamina para obter o mesmo efeito de prazer, desencadeando um desequilíbrio no sistema de recompensa e comportamentos compulsivos.
“ O vício acontece por um fator químico no cérebro mesmo, devido aos estímulos. Tudo que gera estímulo e prazer, tudo que aumenta a dopamina, tem risco de dependência.”
Maria Eduarda de Musis
“Por isso fica cada vez mais difícil parar. Na primeira vez, a dopamina se eleva muito e aumenta esse prazer no jogo. Numa segunda vez, a pessoa já vai sentir a vontade de jogar antes, pois o estímulo vem antes, quando pega o celular, por exemplo. A pessoa começa a sentir o prazer só de pensar que o momento da aposta vai acontecer, tendo um aumento da liberação de dopamina. É contraditório, pois o excesso de prazer acaba deixando as pessoas infelizes”, afirma.
Prejuízos financeiros
Em casos de vícios em jogos de azar, mesmo quando o dependente começa a perder dinheiro ou até quando já perdeu muito, ele não sente vontade de parar – ou não tem forças para isso.
“Nesse ponto, o prazer já não vem do ganhar, o prazer vem do apostar. O vício é o consumo contínuo e compulsivo de uma substância ou um comportamento, como jogos, sexo, bebida. Então, a questão não é ganhar. O problema é o comportamento, o consumo de forma contínua e compulsivamente”, pontua a médica.
Com a facilidade que a internet propicia, sem precisar sair de casa e em poucos segundos o indivíduo pode ter acesso a esses jogos, o que possibilita que um dependente tenha acesso a seu vício durante as 24 horas do dia. Pesquisas recentes mostram que o vício de jogadores por aposta é tão intenso quanto dos dependentes químicos por drogas ou álcool.
Uma pesquisa da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo, publicada em junho deste ano, aponta que 63% dos apostadores tiveram parte de sua renda comprometida, deixando de comprar itens essenciais como roupas, alimentos e medicamentos. Além disso, 50% apostam, pelo menos, uma vez na semana.
Trata-se de um cenário que parece inofensivo: começa com só um “joguinho rápido” e vai se tornando cada vez mais comum. Com isso, o que começa com curiosidade, vira doença. A psiquiatra explica que, além do próprio jogo patológico, o vício pode levar a outros transtornos, como a depressão.
“Há o comportamento compulsivo, em que a pessoa não consegue parar e gera até problemas familiares por isso. Começam os problemas financeiros, que geram problemas sociais e familiares, quadro de depressão, podendo chegar ao suicídio. Isso tudo além do prejuízo funcional de acordar, trabalhar, ter um tempo com a família, cuidar da família e dormir bem, funções que a dependência acaba prejudicando no indivíduo”, esclarece.
“Quando as apostas começam a atrapalhar em todas as esferas da vida, é preciso buscar tratamento com um médico especializado, um psiquiatra, um psicólogo”
Maria Eduarda de Musis
Histórico familiar
Conforme explica a especialista em saúde mental, o histórico familiar é importante e deve ser levado em conta em casos de vícios de forma geral, inclusive nos que envolvem jogos de azar.
“Indivíduos que têm familiares com dependência química, de drogas ou álcool, de jogos, ou outros, são pessoas mais propensas a desenvolver os vícios e precisam ter um certo alerta. Isso por causa do que chamamos de herdabilidade genética. Não quer dizer que, com certeza, a pessoa será dependente, mas que é mais propensa e precisa ter certos cuidados, evitando alguns comportamentos”, pondera.
Maria Eduarda ressalta também que quem tem um transtorno de ansiedade, depressivo ou compulsivo pode piorar ao se envolver com jogos ou mesmo o transtorno ser um fator desencadeante desse vicio na busca pelo prazer, que depois vai levar ao sofrimento.
Discussão nacional
O Governo Federal tem pensado em regras para tentar evitar que pessoas se tornem dependentes de jogos online de apostas. Dessa forma, o Ministério da Fazenda deve concluir nas próximas semanas as regras para as plataformas de apostas e jogos atuarem no país.
Em contrapartida, no Senado, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou, em junho deste ano, o Projeto de Lei 2234/2022, que autoriza o funcionamento de bingos e de cassinos e regulariza jogos de azar, como o Jogo do Bicho, e apostas no país. A proposta está em análise do Plenário do Senado. Aplicativos como o “jogo do tigrinho” são explorados por cassinos online, não possuem regulamentação e não há mecanismos tecnológicos para reprimi-los de forma eficiente.
Alerta para ajuda
Alguns sinais devem erguer uma “bandeira vermelha” e deixar o indivíduo em alerta, como a necessidade de apostar valores cada vez maiores de dinheiro; a tentativa de parar de jogar sem sucesso; perdas de relacionamento por causa dos jogos ou a necessidade de fazer empréstimos para jogar.
“A pessoa deve buscar ajuda ao perceber a perda da funcionalidade, que o jogo está atrapalhando a rotina, quando não consegue fazer as coisas que fazia antes de forma plena, como o trabalho, um relacionamento interpessoal, o relacionamento familiar. Quando as apostas começam a atrapalhar em todas as esferas da vida, é preciso buscar tratamento com um médico especializado, um psiquiatra, um psicólogo. É importante estar atento às nossas mudanças de comportamento ou de pessoas que convivemos”, conclui a médica psiquiatra.