Demitido do governo em meio a suspeitas de irregularidades no leilão de importação de arroz neste mês, o ex-secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura Neri Geller já foi acusado de receber propina por ex-executivos da J&F, mas se livrou da investigação após um recuo dos delatores. Ao UOL, o ex-secretário diz não se lembrar dos fatos narrados pelos delatores.
Só esse Florisvaldo que falou que teria passado R$ 250 mil pra mim. Eu sinceramente, de convicção, não sei o que é, não teve nada
O ex-secretário deixou o cargo no Ministério após uma corretora ligada a seu ex-assessor participar do leilão de arroz. Antes da polêmica, porém, Geller já respondeu a inquérito na PF (Polícia Federal) por suspeita de favorecer o grupo J&F. Ele foi citado nos depoimentos da colaboração premiada de ex-executivos da holding que controla a JBS e demais empresas dos irmãos Wesley e Joesley Batista.
Geller foi acusado de receber propina na sede do Ministério da Agricultura, no período em que era o titular da pasta, na gestão de Dilma Rousseff, em 2014. Florisvaldo Caetano de Oliveira, contador da J&F que ficou conhecido como “homem da mala” por fazer entregas de propina pelo grupo, disse que pagou R$ 250 mil para o então ministro Geller.
A documentação sobre o pagamento foi entregue como complemento da delação. Documentos foram encaminhados à PGR (Procuradoria-Geral da República) como parte dos anexos complementares que os colaboradores do grupo entregaram depois de a J&F fechar seu acordo de leniência, uma espécie de colaboração premiada para empresas.
A investigação, que correu sob sigilo, foi arquivada em dezembro do ano passado, depois que o “homem da mala” mudou sua versão. A PF concluiu não haver elementos para avançar na denúncia envolvendo o ex-ministro e arquivou o caso em 22 de dezembro do ano passado.
Exatamente na mesma data do arquivamento, Geller assumiu o cargo de secretário de Política Agrícola no Ministério da Agricultura no terceiro mandato de Lula. Depois da polêmica do arroz, ele foi exonerado no último dia 12, encerrando sua passagem de quase seis meses no governo.
Geller também chegou a ser cassado pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em outro caso, em agosto de 2022, por suposta captação de recursos ilícitos na sua campanha para deputado federal em 2018. A cassação foi revertida uma semana antes de ele assumir o cargo de secretário no governo Lula 3.
UOL/Reprodução
O então ministro da Agricultura, Neri Geller, ao lado de Florisvaldo Caetano de Oliveira, delator da J&F, em 2014
Relato e foto
Florisvaldo entregou às autoridades uma espécie de ‘foto da propina’. No registro, ele aparece ao lado de Geller na sede do Ministério. O delator também apresentou uma planilha com as entregas de dinheiro que fazia ao grupo, a data da visita ao então ministro e o valor de R$ 250 mil. Geller foi ministro da Agricultura entre março e dezembro de 2014.
Em 2018, Florisvaldo afirmou que teria feito a entrega por ordem de Ricardo Saud, então diretor de Relações Institucionais da J&F. O próprio Saud, porém, afirmou em 2018 à PF que não teria relação com essa entrega.
O caso fez parte de uma investigação sobre pagamentos de propinas da J&F ao MDB de Minas Gerais e ao então deputado federal Eduardo Cunha para obter decisões favoráveis no Ministério da Agricultura durante o governo Dilma. Na época, a pasta estava sob influência do MDB, e Cunha era um dos homens fortes da Câmara, chegando à Presidência em 2015.
A PF (Polícia Federal) fez uma operação em 2018 que prendeu Neri Geller e outros envolvidos no episódio. Na época, a investigação tinha grampos que indicavam que os delatores não tinham revelado tudo que sabiam sobre o esquema no Ministério. Geller ficou preso por 36 horas e foi solto graças a um habeas corpus no STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Grampos de outra investigação reforçaram suspeita
Na época da prisão de Geller, em 2018, PF tinha posse de grampos antigos que reforçavam a suspeita de propina. O telefone de Ricardo Saud estava grampeado em 2014 no âmbito de uma investigação conduzida pela Justiça Eleitoral em Minas, que acabou arquivada.
Os diálogos pegaram conversas de Saud com Neri Geller e com Florisvaldo no dia da entrega. A investigação transcreveu o diálogo que reforça as suspeitas. Questionado pela reportagem do UOL, Geller disse não se recordar do ocorrido.
No diálogo, Saud combina que Florisvaldo iria fazer uma “reportagem” no Ministério e tirar uma foto. O então ministro responde que ele teria que ir “agora”. Confira a transcrição:
Recuo de versões e arquivamento
A investigação foi desmembrada em 2023, mas nem Ricardo Saud nem o próprio Joesley Batista nunca explicaram o motivo do repasse de R$ 250 mil para Geller. Diante disso, o delegado que assumiu o caso do ex-ministro cobrou novas explicações dos delatores.
A defesa de Florisvaldo, então, mudou o depoimento do contador. Em documento encaminhado por escrito à PF, Florisvaldo confirmou a entrega de dinheiro, mas afirmou que não sabia a mando de quem teria sido. Nenhum delator negou a entrega.
“A partir da revisão de planilhas e anexos de pagamentos feitos à beneficiários de doações, pede-se a correção das declarações considerando que, diversamente do outrora afirmado, a instrução não teria sido dada por Ricardo Saud, não tendo o ora colaborador certeza para afirmar de quem teria partido a ordem para entrega de valores ao então ministro Neri Geller”, Florisvaldo Caetano de Oliveira, em manifestação retificada encaminhada à PF em 2023.
Passados nove anos do episódio e sem explicações dos deladores sobre o motivo do pagamento, a PF arquivou o caso.
“Os demais atos necessários à consumação da corrupção teriam sido praticados pelo escalão hierárquico superior da Organização Criminosa, cuja estrutura foi desvendada em diversas outras investigações, razão pela qual as linhas investigativas possíveis passam pela identificação dos executivos da J & F que estariam envolvidos no suposto delito. Ocorre que é exatamente neste ponto em que os colaboradores se contradizem, pois Ricardo Saud nega ter autorizado o pagamento ilícito e Florisvaldo alegou ter se “equivocado”, volta atrás em seu depoimento inicial e diz que não sabe informar qual executivo teria, então, ordenado tal ato ilícito”, relatório final da PF na investigação envolvendo Neri Geller e a suposta propina da J&F.
Outro lado
A J&F não respondeu questionamento da reportagem por e-mail. A defesa de Ricardo Saud informou que não iria se manifestar sobre os episódios citados na reportagem. E Florisvaldo Caetano de Oliveira não retornou às tentativas de contato por telefone e Whatsapp.
Questionado pela reportagem, Neri Geller afirmou não se recordar da entrega de dinheiro e do motivo da visita de Florisvaldo em 2014. Ele disse ainda que a investigação envolvendo o Ministério nunca avançou e afirmou que o próprio Joesley afirmou em sua delação que nunca teve conversa “não republicana” com ele.
“Toda delação do Joesley e do Ricardo Saud, em todos os depoimentos, eles citaram o que é verdade, afirmaram que em todas as relações com o ministro Neri Geller foram extremamente republicanos. Só esse Florisvaldo que falou que teria passado R$ 250 mil pra mim. Eu sinceramente, de convicção, não sei o que é, não teve nada. Eu prestei depoimento (em 2018) e nunca mais fui chamado”, Neri Geller, ex-ministro da Agricultura.