Arte: Rodinei Crescêncio/Rdnews
Carioca cuiabano, como gosta de se apresentar, Clark Mangabeira sempre foi um apaixonado por Carnaval e fez desse encanto um ofício, que divide ao lado do seu companheiro, o também enredista Victor Marques. Ao , ele fala sobre a importância da festividade como uma manifestação cultural, o papel crítico dos enredos, a movimentação econômica e necessidade de políticas públicas para a garantia do acesso à cultura e manutenção da tradição popular de ocupar as ruas.
Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista:
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Arquivo Pessoal
Qual a sua relação com o Carnaval?
Eu nasci no samba. Sou carioca, lá da Ilha do Governador, subúrbio do Rio de Janeiro. Em casa tenho diversas fotos da minha mãe desfilando na década de 70. Ela é paranaense e foi muito nova para o Rio e, desde então, desfila. Então eu sempre fui meio folião. Ia para o carnaval nas escolas, nos bloquinhos de rua e essas coisas.
Como a paixão pelo Carnaval também se tornou um ofício?
Minha primeira vez na Sapucaí foi na década de 90. E aí agora em 2014/2015 eu comecei a entrar em escolas de samba, junto com meu parceiro de vida, o professor Victor Marques, que também mora em Cuiabá, e comecei a trabalhar com escola de samba. Aí a gente trabalhava com fantasia, alegoria, o Victor especialmente como diretor de alegoria. Até que, em 2017, surgiu um convite para que nós escrevêssemos o enredo para a Unidos do Viradouro, no Carnaval de 2018. O enredo se chama “Vira a Cabeça, Pira o Coração – Loucos Gênios da Criação”. Nós escrevemos e ganhamos na Sapucaí. A Viradouro foi campeã da Série A e voltou ao Grupo Especial. Não paramos mais de 2018 para cá. E é legal ressaltar que muito enredo que passa pela Sapucaí, sai aqui de Cuiabá. Fizemos enredos para a Viradouro, Unidos de Vila Isabel, Mocidade Alegre – onde fomos vice-campeões – e atualmente estamos na União da Ilha do Governador. Voltei para o meu bairro de origem e escrevemos o enredo que vai desfilar pela União da Ilha do Governador.
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Qual a diferença de samba-enredo para enredo?
Eu faço o enredo, o samba de enredo é derivado desse enredo. Se fosse um filme, eu seria o roteirista; se fosse o teatro, eu seria o dramaturgo. O enredo é a história que está sendo contada na Sapucaí, e a partir deste enredo, a ala dos compositores faz o samba de enredo. A gente vai alinhando enredo e samba no nosso trabalho ao longo do ano.
Os enredos de Carnaval costumam trazer a crítica sociopolítica. Como é o processo de transformar essas histórias cantadas durante uma festividade em reivindicações sociais?
Essa história que a escola de samba conta, seja em Cuiabá ou no Rio de Janeiro, é sempre política. Carnaval é um ato político e, por isso, a gente tem enredos que vão contar histórias que são necessárias socialmente e culturalmente para aquele período. Os enredos atuais estão muito nessa pauta social, política, de crítica à sociedade, que reflete esse momento de mostrar à sociedade diversos pontos sensíveis que têm que ser explorados e falados. Então, a Sapucaí vira esse grande palco, mundo afora, no qual nesses enredos são colocadas histórias narradas, obviamente pela plástica e pelas alegorias, fantasias e também pelo samba, que é um reflexo do nosso enredo. O Carnaval ser político e o enredo ser político e politizado são mais que necessários, são imperativos onde a gente vive.
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Clark Mangabeira e a comissão da União da Ilha do Governador: desfile acontece neste sábado (10) e traz enredo antirracista
O Carnaval é reconhecido como um movimento das periferias e organizações de bairros que conquistam espaço nos grandes centros da cidade por meio da manifestação da cultura popular. Como você percebe esse movimento, que é contrário à vivência cotidiana?
Acho importante diferenciar algumas coisas. Uma coisa é escola de samba, outra coisa é a história do Carnaval. Obviamente, são coisas imbricadas, mas são coisas em paralelo. Pensamos a escola de samba como uma manifestação possível do Carnaval. Já o Carnaval de bloco e de rua é central e por isso político. Ocupar a rua, ocupar com essas sociabilidades, ocupar os espaços públicos é uma forma de visibilização, é uma forma de serem vistas as comunidades, os grupos sociais, a população periférica, os bairros, enfim, é necessário e importante essa ocupação do espaço público. E é essa sociabilidade que o Carnaval promete e isso é uma forma de disputa narrativa e disputa política, de mostrar que as ruas são de todas e todos, o que permite pensar o Carnaval com essa potência no qual diversas narrativas são possíveis.
“Carnaval é um ato político e, por isso, a gente tem enredos que vão contar histórias que são necessárias socialmente e culturalmente para aquele período”
E em relação às escolas de samba, que desempenham um papel social e incômodo importante para a comunidade carnavalesca, falta incentivo público diante da magnitude que essas organizações possuem?
O incentivo público às escolas de manifestações culturais têm que ser uma política pública cultural, parte de uma política econômica, inclusive. As escolas de samba, no Rio especificamente, o investimento que a Prefeitura e o Estado fazem é muito menor do que o retorno que o Carnaval e a Sapucaí dão para o Rio. O Carnaval movimenta a cidade inteira. Então, o investimento público nesta festa popular como parte de uma política pública é central, tanto na realidade do Rio como na de Cuiabá. A esfera pública tem que entender o Carnaval como uma potência econômica, e é fundamental para esse agentes entender que o Carnaval é uma vitrine da cultura popular brasileira. E todos os investimentos têm retorno, com muito mais volume.
Neste ano, após um hiato provocado pela pandemia, o Carnaval retorna de forma mais expressiva para as ruas de Cuiabá. Como você enxerga esse movimento de retomada?
É uma retomada muito importante para, primeiramente, a economia da cidade, e segundo por uma tradição. Cuiabá tem uma tradição de uma Carnaval regionalizado, e costumo dizer que o melhor Carnaval que a gente tem, é o Carnaval que a gente vive, participa. Então para quem estará em Cuiabá e viverá o Carnaval em Cuiabá, será o melhor Carnaval do mundo. O Carnaval de rua tem uma tradição mais antiga que as escolas de samba, uma vez que a folia nas ruas começou primeiro. Pensar isso é fundamental para fazer rodar a cidade e valorizar a cultura popular. Como espaço público, a rua é de todas e todos e eu vejo essa retomada como excelente.
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Victor Marques e Clark Mangabeira
Atualmente, ao mesmo tempo que é possível ver um reconhecimento do Carnaval como manifestação popular, crescem as folias privadas, como uma forma de uma “elitização” do Carnaval. Qual sua avaliação sobre esse cenário?
São disputa de narrativas. O Carnaval mais gourmet e elitizado existe, não dá para fechar os olhos para isso. Na própria Sapucaí você tem um classificação social muito grande. Os camarotes custam uns bons mil reais. E felizmente o papel dos artistas do carnaval e dos gestores públicos é cada vez mais tornar a festa democrática. Isso é fundamental. Então, tornar a festa democrática e acessível para todos, seja na Sapucaí ou nas ruas de Cuiabá, é necessário e urgente, e quem tem que garantir isso é o Poder Público. Não se pode impedir outras manifestações, mas sim dar possibilidade da festa ser democrática. É fundamental para mim que tenhamos gestão econômica e social. Então, assim, o Carnaval “gourmet” existe, mas existe também o das ruas, dos blocos. O meu convite é sempre para que o povo vá para as ruas, ocupem os lugares, mas para isso é preciso ter garantia de acesso e direitos, para que o povo ocupe. Existem os dois lados, mas reforço o convite para que nós ocupemos a rua e vamos curtir o Carnaval da rua para a rua, na rua.
Como enredista, você sai pela União da Ilha do Governador, com o enredo “Doum e Amora: crianças para transformar o mundo!”. Como foi a inspiração e o que público pode esperar?
Nosso desfile vai passar pela Rede Bandeirantes, no sábado (10), a partir das 20h30. União da Ilha está na Série Ouro 2024, que é como se fosse a segunda linha. Tem o grupo especial e tem a série ouro. E ao lado do enredista e meu companheiro de vida, Victor Marques, a gente fez o enredo Doum e Amora. O público pode esperar em primeiro lugar, o enredo antirracista. Parte dessa história foi inspirada no livro “Amoras”, do rapper Emicida e na mitologia afrobrasileira. Doum e Amora, juntos em meio a doces e brincadeiras, a partir do olhar infantil, baseados em uma educação antirracista, apontam para uma realidade multicolorida em que o arco-íris não tem somente as sete cores que costumamos ver.