Vida de feirantes se entrelaça com história do Mercado do Porto: tradição cuiabana | …

Annie Souza/RDNews

Mercado do Porto - especial

Com mais de 60 anos de história e fazendo parte da cultura cuiabana, o Mercado do Porto pode se tornar o novo cartão-postal de Cuiabá após a grande reforma pela qual está passando. Para feirantes que participam desde o começo da primeira feira pública popular da Capital, o Mercado do Porto é um mais que um patrimônio histórico, faz parte da sua história de vida.

“Eu tenho três filhos, um advogado, uma médica e um mestre na Ciência da Computação. Tudo com essa verdurinha que você está vendo aqui. Formei os três com o dinheiro dela. Não só com essa banca de hoje, mas com uma um pouquinho menor, lá na beira do rio. Tudo da minha vida foi das minhas verduras. Construí minha casinha, comprei outro terreno, não tenho do que reclamar”, relata o feirante Vandir Lopes, de 70 anos.

Ele conta que trabalha desde os sete anos de idade e que começou a vender verduras há muito tempo, quando o Mercado do Porto era ainda apenas uma pequena feira de rua. A feira nasceu em meados de 1960 na região central de Cuiabá, na praça Rachid Jaudy, no meio da Avenida Isaac Póvoas, contando com pouco mais de 10 feirantes expondo seus produtos em charretes e algumas poucas barracas improvisadas. Ao longo dos anos, foi mudando de lugar de acordo com o aumento dos feirantes e o crescimento dos consumidores.

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Vandir Lopes Mercado do Porto

Embora sejam raras as pesquisas históricas, feirantes mais antigos relatam que a feira saiu da praça Rachid Jaudy para o espaço entre o estádio Presidente Dutra e o Arsenal de Guerra, depois foi para a Avenida da Prainha, atrás do Quartel da Polícia Militar, onde hoje é o Shopping Popular. Funcionou também no bairro Verdão, depois na praça Maria Ricci, no Porto, e no Mercado do Peixe, o atual Museu do Rio. Em 1995, foi instalado na Avenida 8 de Abril, entre o córrego Mané Pinto e o Rio Cuiabá.

Vandir passou por todos esses pontos e conta que, depois de tantas mudanças, não achava que iria fazer mais uma tão grande quanto essa, aos 70 anos. A nova estrutura, inaugurada nessa sexta-feira (21), busca modernizar o ponto histórico.

“Eu não imaginava mais, achei que já estava até bom demais isso aqui pelo trabalho que eu tinha antes, na beira de rio e banquinha. Vai ficar muito bom, ainda mais climatizado. Não é qualquer lugar do Brasil que vai ter uma feira como essa. Já tem turistas, gente que vem de outros lugares para conhecer do jeito que está hoje. Recebo clientes que falam que não podiam vir a Cuiabá e ficar sem conhecer a feira. Imagina agora com ela novinha? Vai ser bom demais”, celebra Vandir.

Patrimônio histórico

O Mercado do Porto foi declarado em 2015 como patrimônio histórico, artístico e cultural imaterial. Atualmente, a feira recebe cerca de 120 mil visitantes e movimenta R$ 50 milhões por mês, gerando 1,2 mil empregos diretos e indiretos. O complexo comercial é dividido por setores de pescados, açougues, frios, doces, lanchonetes, restaurantes, hortigranjeiros, rações e similares, confecções e utilidades domésticas. O Mercado funciona de terça-feira a domingo, embora alguns comércios abram também às segundas-feiras.

Eu tenho três filhos, um advogado, uma médica e um mestre na Ciência da Computação. Tudo com essa verdurinha que você está vendo aqui. Formei os três com o dinheiro dela.


Vandir Lopes, feirante

O Mercado do Porto mantém o método tradicional de preparo de peixes, retirando a espinha e fazendo cortes especiais. Também oferece raridades da gastronomia cuiabana, como o pixé, o furrundú, o doce de caju, as bananinhas fritas, além de frutos típicos da região do cerrado, como o pequi, dentre vários outros ícones da cultura regional, frutas e verduras frescas.

“A feira livre é procurada pela gastronomia. Você vê na feira as pessoas indo apreciar o caldo de mocotó, o caldo de piranha. O pastel e o caldo de cana são imbatíveis. É um lugar onde jovens e adultos terminam as suas noitadas, saem das boates e vão a feira para continuar a sua cerveja e depois fazem o conhecido ‘quebra torto’. Aos sábados e domingos, muitos cuiabanos têm ali as suas cadeiras cativas para uma roda de conversa acompanhada de um peixe frito, uma piraputanga assada, um escaldado”, afirma a historiadora Neila Barreto.  

“Na feira você encontra as pessoas, elas param, conversam, é um lugar de convivência, e é uma tradição que vai passando de pai para filha. Hoje você vê muitas mulheres comandando as bancas, que são filhas ou mulheres dos feirantes, diferente de antigamente, em que a atividade era mais masculina”, analisa Neila.

 Simone Capestana é uma dessas mulheres. Há 30 anos ela trabalha no negócio de família, o famoso Rei do Mocotó. “Aqui é tradicional. Vem aqui na feira quem gosta do nosso tempero, da nossa comida, conhece nosso atendimento, quer uma cervejinha bem gelada, uma comida bem temperada, porque senão não viria, com a estrutura como estava”, relata.

Se depender de Simone, o negócio vai continuar passando para as próximas gerações da família. Ela salienta que o Mercado já faz parte da sua história de vida e a mudança para a nova estrutura já é a quarta que ela participa. “A próxima, se tiver, já falei para minha filha: é com você, quero estar em casa descansando”, conta, com humor.

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Simone Capestana - Restaurante Rei do Mocot�

“Eu cheguei aqui era criança. A feira era do outro lado, na beira do rio mesmo. Lá era muito complicado, não era limpo. Quando nos mudamos para cá, viemos para a glória. Passamos por muitas dificuldades e fizemos uma peregrinação. Conseguimos criar um lugar que se tornou tradicional, que faz parte da história de Cuiabá. É gratificante poder fazer parte”, completa.

Apesar de tradicional, Simone afirma que muitos moradores de Cuiabá e da Baixada Cuiabana ainda não conhecem o Mercado do Porto e que agora, com a nova reforma, espera que mais visitantes se interessem em conhecer.

“O espaço estava deteriorado e muitas pessoas vinham, compravam algo e iam embora, às vezes nem viam os restaurantes.  Muita gente já me falou que não sabia que tinha pastel, caldo de mocotó, essas coisas. E agora mais pessoas vão saber que estamos aqui. Ficaremos mais visíveis, estaremos em um ambiente climatizado, terá banheiros, que é algo que sofremos aqui, porque não temos banheiros. Acho que com tudo isso mais pessoas vão passar a conhecer a feira e nossas comidas”, afirma com expectativa.

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Simone Capestana - Restaurante Rei do Mocot�

“Faço parte da história”

O feirante Antônio José da Silva é outro que tem no Mercado do Porto grande parte de sua história. Ele começou a vender peixe no local há mais de 30 anos. “Eu confesso que já perdi as contas. São 30 anos só aqui nesse lugar, mas comecei quando o mercado era no ponto antigo, na beira do rio. Eu sinto que nós fazemos parte da história de Cuiabá. Aqui é um espaço conhecido, que já tem tradição. Já é um ponto turístico. Quem vem visitar a Capital vem no Mercadão do Porto. Os turistas vêm de fora e querem conhecer, principalmente o peixe”, relata.

Apesar de apoiar a reforma, apontada como necessária, Antônio afirma que essa fase de transição tem trazido custos de investimentos e que essa é uma dificuldade a ser superada. “Para mudarmos para as tendas provisórias, tudo é gasto. Precisei colocar pia, azulejo, pagar pedreiro. Nada está indo de graça. Quem gasta pouco está gastando pelo menos R$ 3 mil”, pontua.

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Ant�nio Jos� da Silva - Peixaria Silva

No entanto, o feirante acredita que após passar esse período de mudanças, a situação deve melhorar muito e mais clientes devem ir até o Mercado. “Tudo que é novo gera muita expectativa. Depois de pronto, eu acho que vai melhorar muito, atrair mais pessoas, e automaticamente aumentar o fluxo de venda”, diz.

A historiadora Neila Barreto corrobora a visão de Antônio. Ela pontua que as feiras das cidades sempre aabam se tornando atrativos culturais e turísticos. “Ali que as pessoas vão comprar seu peixe, caldo de cana, furrundu, hortaliças, que antigamente eram todas produzidas ao redor do Rio Cuiabá. Para mim é um lugar agradável de visitar, de apreciar o modo de vida dos cuiabanos, um atrativo cultural e turístico de encher os olhos e preservar as memórias”, pontua.

A reforma

A primeira etapa da reforma de revitalização do Mercado do Porto foi entregue nessa sexta e custou R$ 13 milhões. Foram entregues 54 boxes definitivos na nova estrutura climatizada, com dois pisos e uma praça de alimentação no piso superior. Além disso, foram instaladas 16 tendas provisórias na área externa, onde os demais feirantes irão atuar até a conclusão da segunda etapa do projeto, que deve começar no segundo semestre do ano que vem.

A comercialização de peixes, carne, frutas, legumes e verduras será feita nessa área instalada temporariamente. A administração instalou, na parte externa 16 climatizadores ecologicamente adequados e que garantem a redução da temperatura ambiente em até 15º C.

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inaugura��o da 1� etapa do Mercado do Porto em Cuiab�

O projeto de revitalização é antigo, de 2011, mas os recursos e emendas parlamentares estavam paradas desde 2012, e a obra levou muitos anos para sair do papel, só tendo começado em abril de 2019. Atualmente, 149 permissionários têm seus estabelecimentos no local. A grande reforma no local era há muitos anos esperada há anos pela população e, principalmente, pelos feirantes.

No total, com a reforma, serão 187 novos espaços comerciais que irão atender exclusivamente aos permissionários que já atuavam na antiga estrutura.



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